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Estavamos nos ultimos dias de Dezembro de 1846. Uma camada mui espessade neve cobria o sólo. O ar, sombrio e carregado, indicava que mais nevenão tardava a cahir. Os ramos nús das arvores dos montes tremiamsoprados pelo vento norte gelado. Estava tudo n'um perfeito socego, etristeza; nem o mais leve murmurio se ouvia.
Uma velha, e uma criancinha, apesar do rigor do frio, seguiam comdifficuldade o caminho, que da serra de Vallongo conduz a S. Cosme. Acriança, d'espaço a espaço, soprava ás mãosinhas inteiriçadas pelo frio,e não se podendo sustentar sobre os pés, que tinha inchados pelasfrieiras, caminhava vacillante; mas vencendo todos os obstaculos, comuma energia superior á sua idade, [222] tomava galhardamente o seu lugarao lado da velha. Esta parecia ter sessenta annos. Estava corcovada maispela miseria, do que pela idade, e tinha no rosto profundas rugas. Pelomodo como andava, e tateava o caminho com a mulêta, via-se que era cega.
--Aonde vamos nós, Rosa?--perguntou a velha á rapariguinha.
--Em meio caminho, minha avó.
--Jesus Senhor, valei-me,--disse a cega,--pois que as minhas pobrespernas já estão cançadas, e parece-me que não chego ao fim da jornada.
--Encoste-se ao meu hombro, avósinha, que eu não estou cançada.
--Não, não. Tudo está acabado. Eu morro aqui, Rosinha. Tenho muita fome,e muito frio para vencer o caminho até S. Cosme. Ai meu Pai do céo, queme sinto desfallecer...
Fez um gesto de desespero, e a cega cahiu sobre o caminho.
--Avósinha, avósinha,--gritava Rosa assustada,--volte a si, que lh'opeço eu; mais um pequeno esforço e chegaremos a S. Cosme.
A cega não deu accordo de si.
--Avósinha,--continuou Rosa chorando, e cobrindo-a de beijos,--se meabandona, que hei-de fazer? Quer que eu morra de paixão?
--Morrer, tu, minha Rosinha,--disse a cega levantando-se.--Oh! meu Deus,não permittaes tal.
--Então levante-se que lh'o peço eu; se fica aqui mais tempo o friomatal-a-ia. Em S. Cosme nos aqueceremos.
--Ai de mim,--disse a cega, levantando-se ajudada de Rosa,--e a snr.a D.Thereza receber-nos-ha?
--Ha-de receber sim, minha avósinha, eu lh'o afianço. Não creio que aboa snr.a D. Thereza nos despeça. Quando eu lhe ia vender flôressilvestres, que apanhava [223] no monte, abraçava-me, e dizia-me muitasvezes, que desejava que eu fosse sua filha.
--Não duvido que ella te receba, porque és muito linda e agradavel;agora o que eu não creio é que me receba a mim, que sou uma velha ecega, que para nada sirvo.
--Se assim acontecer, voltaremos á nossa aldêa, e os bons lavradores,que conheceram meus paes, terão piedade de nós, soccorrer-nos-hão, e eutrabalharei para lhes pagar, o que elles vos derem.
A avó, muito commovida, apertou ao coração a pequena, e murmuroupalavras de ternura e gratidão; e reanimada por esta felicidade, queRosa lhe tinha feito experimentar, retomou com passo mais firme ocaminho de S. Cosme.
O vento soprava já com mais força; o ar tinha escurecido mais, epequenos flocos de neve se viam voltejar no ar. Rosa, tiritando comfrio, fazia esforços sobrehumanos para poder andar, e cada passo, que apobre cega dava, era acompanhado d'um suspiro surdo. O vento augmentou,e os flocos de neve, que ao principio eram raros, cahiam em maiorabundancia.
--Rosinha,--disse a cega,--bem queria andar, mas não posso; deixa-meficar.
--Avósinha, eu já avisto a torre da igreja de S. Cosme.
--Estás bem certa d'isso?
--Eu não queria mentir...
--Vamos andando. Permitta Deus que eu possa vencer o